Cada um comemora o ano novo de maneira diferente. Tem quem prefira passar com a família, vestir-se de branco, ir à praia assistir aos fogos de artifício, encaminhar-se lentamente até a beirada do mar com um buquê de rosas brancas nas mãos e fazer sua oferenda à Iemanjá, a rainha do mar. Também tem quem prefira passar o reveillon com os amigos, vestir-se de vermelho, beber todas a noite inteira e só terminar de comemorar a chegada do ano novo ao amanhecer do primeiro dia de janeiro. Conversando com um bom e velho amigo cinéfilo, descobri uma outra forma de se celebrar o reveillon: sentado em seu sofá, tomando uma taça de vinho tinto com todas as luzes da sala apagadas e somente a tela da televisão ligada. Nela, o melhor filme do ano. Claro que cada um tem o seu, mas é justamente ai que reside o maior prazer que um cinéfilo de verdade pode encontrar. Ao invés da barulheira dos fogos de artifício que pintam o céu das mais diversas cores ou da mesa de ano novo farta de carnes, tortas e bolos, aquele filme que mais lhe chamou a atenção durante todo o ano que está terminando.
O filme, no caso deste meu amigo, é Vencer, do diretor italiano Marco Bellocchio. Considerado por ele, por mim e por vários outros críticos internacionais como o melhor filme de 2010, Vincere é muito provavelmente a obra mais completa e magnífica de toda a carreira do cineasta Bellocchio. Este, que já foi responsável por verdadeiras obras-de-arte como “De Punhos Cerrados”, “A China Está Próxima”, “A Hora da Religião”, “Bom Dia, Noite” e “O Casamento”, realiza aqui um trabalho grandioso, que retrata com perfeição o relacionamento entre Ida Dalser (interpretada pela maravilhosa Giovanna Mezzogiorno) e o até então futuro ditador italiano Benito Mussolini (o ótimo Filippo Timi) e todo o seu desenrolar dramático, político e chocante. Dono de enquadramentos perfeitos e da mais linda trilha sonora, Vincere possui pelo menos uma dúzia de momentos que devem entrar para sempre na história do cinema italiano, como a cena do choro de Ida ao ver Charles Chaplin chorar.
Ainda que seja um programa perfeito para o ano novo, uma vez que “Vencer” é sem dúvida nenhuma uma obra extremamente relevante tanto no sentido histórico quanto dentro da estética cinematográfica, não seria nada ruim passar a virada do ano na companhia de Christopher Nolan e suas maravilhosas e delirantes sequências de sonhos em A Origem, um marco do cinema comercial norte-americano. Sendo um dos últimos filmes a serem lançados na primeira década do século XXI, Inception surpreendeu o mundo com a agilidade e criatividade com as quais Nolan contou uma história mirabolante e nada falha de sonhos. Fazendo a cabeça do espectador girar com sequências nada menos que brilhantes (a cena sem gravidade é uma das mais sensacionais vistas no ano de 2010, por exemplo), Nolan cria camadas e mais camadas de enredo misturando mitologia, arquitetura e muita, mas muita ação. Para quem já tinha provado do seu calibre em Batman – O Cavaleiro das Trevas, a obra-prima definitiva das adaptações de HQ’s, assistir ao desenrolar crônico de “A Origem”, onde Nolan brinca com o tempo e com o inconsciente humano foi, sem sombra de dúvida, uma das experiências mais marcantes do cinema em 2010. Até hoje as pessoas se perguntam: afinal, o totem parou ou não de girar? Ora, se realmente importa, nem o próprio Christopher Nolan deve saber a resposta.
Mas para quem pensa que já tinha visto de tudo em outros filmes filmados dentro de um presídio, não tinha assistido a O Profeta ainda. O novo trabalho do cineasta francês Jacques Audiard, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010, é nada mais do que a obra-prima francesa do ano que terminou semana passada. E dizer isso quando se tem como concorrente o ativo e genial Alain Resnais e seu Ervas Daninhas é um tanto quanto astuto de minha parte. Un Prophète é um daqueles filmes que a gente assiste e simplesmente não quer que acabe. Dono de um roteiro nada menos que perfeito, e com atuações e direção de mestre, o longa conta a história de como o analfabeto Malik El Djebena, meio árabe, meio córsico, conseguiu tornar-se um verdadeiro líder da principal facção criminosa atuante dentro dos presídios da França. A forma como Audiard desenvolve a narrativa é digna dos maiores elogios e o próprio protagonista, o inexperiente Tahar Rahim, acabou abocanhando diversos troféus ao redor do mundo por sua interpretação de primeiríssima qualidade.
Mas não pense que só cineastas de fora são capazes de filmar e finalizar obras-primas. Neste ano que passou, mais de 10 milhões de brasileiros puderam conferir nos cinemas aquele que talvez seja a obra nacional mais importante do século até aqui. Tropa de Elite 2, sequência do fenômeno de público – e pirataria – que acabou levando o Leão de Ouro em Berlim, tornou-se recentemente o filme mais visto no Brasil de todos os tempos. Essa marca já havia sido batida no próprio ano de 2010, quando Avatar chegou “chegando” e arrastou milhões de pessoas aos cinemas para ver o que havia de novo na tecnologia 3D. “Tropa de Elite 2” ficou a cargo mais uma vez do diretor José Padilha, que conseguiu superar-se mais uma vez e entregou uma obra gigante, chocante e muitíssimo bem filmada. “Tropa 2”, dizem alguns por aí, é o filme que todo brasileiro precisava assistir. E, cá pra nós, em pleno ano de eleição, assistir a essa verdadeira depressão política não era lá uma ideia muito animadora. Extremamente realista, o longa mostra o quão jogo é o sistema político no Brasil e mostra que a triste realidade está longe de acabar. O lendário Capitão Nascimento, que pouco tempo depois de chegar aos cinemas com o primeiro Tropa de Elite já caiu na boca do povo, aqui torna-se um herói brasileiro. E Wagner Moura, mais uma vez responsável pela interpretação do personagem, não deixou barato e entregou mais uma atuação brilhante. Eu poderia ficar dias aqui escrevendo o quanto “Tropa de Elite 2” representa para o cinema nacional, mas tudo já foi dito. Eis um filme de relevância absurda, que figura entre os melhores filmes do ano e não à toa, merece o sucesso que tem.
E por falar em sucesso, ainda que bem menor do que o justo, Quentin Tarantino é atualmente um dos diretores mais procurados pelo público. Depois do sucesso e das oito indicações de Bastardos Inglórios no Oscar 2010, chegou aos cinemas brasileiros – com três anos de atraso – um dos filmes menos conhecidos do cineasta americano. À Prova de Morte, parte do projeto Grindhouse desenvolvido também por Robert Rodriguez, é mais um dos típicos filmes de Tarantino, com as boas e velhas tarantinices que fazem valer o gênero tarantinesco de seus trabalhos. Traduzindo, Death Proof é mais uma obra sensacional que entrou para a filmografia de QT em 2007 e só pôde ser conferida na tela gigante ano passado. Longos diálogos, personagens femininas marcantes, violência explícita e exacerbada e todos os outros maneirismos típicos do cinema de Tarantino estão aqui presentes mais uma vez. “À Prova de Morte”, na realidade, aparenta ser sua obra mais sincera, e não por acaso, a mais do estilo “ame-o ou deixe-o”. “Death Proof” é um daqueles filmes cujos admiradores são poucos, mas cuja qualidade salta aos olhos daqueles que de fato gostam do cinema sujo e delirante de Quentin Tarantino. O lap dance, a perseguição, o acidente de carro, as cores fortes no contraste com o preto no branco, a trilha sonora ousada e contagiante e o final são somente alguns dos momentos que fazem a espera de três anos valer e muito a pena.
Mas se existe satisfação maior para um cinéfilo do que ver um Martin Scorsese, no auge do seus 68 anos de idade, aventurar-se por mares nunca dante navegados, eu não conheço. A empreitada do consagrado cineasta dos filmes de máfia, como Os Bons Companheiros, Os Infiltrados, Cassino e também de outras eternas obras-primas como Taxi Driver e Touro Indomável no mundo do suspense não poderia ser melhor. Ilha do Medo estreou no início de 2010 e mesmo assim sobreviveu aos mais diversos lançamentos e manteve-se firme na lista dos melhores filmes do ano. Contando com uma pitada bastante sinuosa do cinema de Stanley Kubrick em O Iluminado e também da presença marcante de Alfred Hitchcock em todas as suas contribuições para o suspense no cinema, Scorsese brinca com o espectador de forma instigante e revela um filme de sequências magníficas e muito bem sitiadas por uma atuação de mestre de Leonardo DiCaprio. Apesar das críticas à previbilidade da trama, um final alternativo não deve ser descartado e o espectador, que julga-se muito sagaz, pode acabar se surpreendendo com a própria ingenuidade. Shutter Island é um filme interessantíssimo, superior inclusive a “Os Infiltrados”, que deu o Oscar à Scorsese, e que prima pela beleza técnica e por um trabalho de direção nada menos que ótimo. Imperdível, por todos esses e outros motivos.
Outra produção que merece todo destaque é Toy Story 3, a mais recente obra-prima da Pixar. Segundo o site Rotten Tomatoes, 99% da crítica mundial aprovou o terceiro filme da série de brinquedos animados que conquista crianças e adultos há mais de 15 anos. A mesma equipe que se uniu para criar a primeira animação totalmente digitalizada da história do cinema, que no caso é o primeiro Toy Story, reuniu-se mais uma vez para trazer ao mundo a segunda sequência da história de Woody e Buzz Lightyear. Apresentando temas importantes como o crescimento e os velhos conceitos de amizade e união, “Toy Story 3” levou plateias às lágrimas ao trazer à tona a nostalgia que muitas “crianças crescidas” sentem ao lembrar da infância. Sem dúvidas, é um trabalho de animação de primeira qualidade que funciona perfeitamente tanto com crianças, ao apresentar sequências divertidas dentro da creche, por exemplo, quanto por adultos, que sentem a mensagem que o filme passa com maior naturalidade. Um dos filmes mais lindos e queridos do ano, que entrou para a história não só pela relevância trazida ao mundo cinematográfico, mas também por ter se tornado a primeira animação a ultrapassar a marca do 1 bilhão de dólares nas bilheterias mundiais.
Recentemente acusado de um antigo crime de abuso sexual contra uma menina de 13 anos, o cineasta francês Roman Polanski não deixa de ser rei. Mesmo longe, o diretor trouxe aos cinemas seu mais recente trabalho, um thriller de suspense genial, cujas incontáveis qualidades contribuem para a formação de uma obra-prima moderna, rica em detalhes e muito, mas muito interessante. O Escritor Fantasma é um filme repleto de belas nuances e cheio dos requintes típicos do cinema de Polanski. Bem desenvolvido, com uma direção segura e boas atuações – especialmente de Olivia Williams – The Ghost Writer é um daqueles longas que vale acompanhar até o fim somente para ter o prazer de assistir a um dos planos-sequência mais brilhantes do ano, que compõe justamente o seu ato final. Lindo do início ao fim, contando ainda com o sempre competente trabalho do compositor Alexandre Desplat na trilha sonora, “O Escritor Fantasma” é a comprovação da majestade de Roman Polanski.
Não é fácil destacar-se perto de “Toy Story 3”, ainda mais quando se é uma animação feita de argila. Pois é, Adam Elliot mostra que o talento mostrado em Harvey Krumpet não foi somente um espasmo de criatividade e competência apresentado pelo cineasta. Ele lança no mundo mais uma animação de primeiríssima linha, simples em sua composição, mas extremamente rica de conteúdo. Mary & Max – Uma Amizade Diferente é uma mistura deliciosa de gêneros, que apresenta temas adultos como a obesidade, solidão, abandono, suicídio e velhice, mas que os mostra de forma sutil, inquietante e, por vezes, muito divertida. O relacionamento de uma menina ignorante e largada na Austrália com um homem solitário de Nova York comoveu e fez rir plateias no mundo inteiro e com certeza merece ser visto por você, caro leitor. Uma animação agridoce e muito rica.
Um dos destaques do Oscar, Amor sem Escalas é outro exemplo de filme que, mesmo tendo sido lançado no início em janeiro do ano passado, permaneceu na lista de melhores filmes de 2010. Dirigido de forma intensa por Jason Reitman, premiado em diversas ocasiões pelo trabalho realizado aqui, Up in the Air é um interessante retrato dos Estados Unidos em meio à crise que se alastrou mundo afora. Distanciando-se um pouco dos grandes aglomerados urbanos, tais como Los Angeles, Washington D.C. e Nova York, o filme concentra-se em cidades menores, onde a passagem da crise é exibida de forma diferenciada. “Amor sem Escalas” conta com uma montagem bastante ágil e músicas de extremo bom gosto, mas o destaque mesmo fica por conta do elenco. Desde um frio e distante George Clooney, que entrega aqui sua melhor interpretação, até a veterana e pouco requisitada Vera Farmiga, o longa passa inclusive por um rosto revelado na Saga Crepúsculo. Anna Kendrick mostra que, quando encontra um papel decente para trabalhar em cima, é capaz de grandes feitos.
Enfim, 2010 foi um ano e tanto. Foi o ano em que pelo menos três filmes ultrapassaram a barreira do 1 bilhão de dólares nas bilheterias. Fora “Toy Story 3”, o novo filme de Tim Burton Alice no País das Maravilhas, e o que se tornou hoje a maior bilheteria da história do cinema, o gigasucesso “Avatar” (quebrando inclusive a marca dos 2 bilhões de dólares arrecadados), foram os outros dois novos bilionários do ano. 2010 foi marcado também pela estreia de outros grandes blockbusters. A sequência Homem de Ferro 2 e o fenômeno de público A Saga Crepúsculo: Eclipse foram dois dos maiores sucessos do ano que terminou e. mais tarde, Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte I, que ainda está em cartaz nos cinemas, estreou e ajudou a quebrar outros recordes. Foi também a vez de o terceiro filme de Nárnia chegar aos cinemas, As Crônicas de Nárnia: A Viagem do Peregrino da Alvorada, da competente animação da Dreamworks divertir pais e filhos com voos rasantes em Como Treinar seu Dragão e da refilmagem do clássico do terror A Hora do Pesadelo chegar aos cinemas e incomodar os cinéfilos. Passou por aqui também as aventuras mitológicas Fúria de Titãs e Príncipe da Pérsia: As Areias do Tempo, os filmes de ação nonsense Esquadrão Classe-A e Os Mercenários, os de temática homossexual Eu Matei Minha Mãe e Patrick 1.5, os sucessos nacionais menores que “Tropa de Elite 2”, Chico Xavier e Nosso Lar e também os indicados ao Oscar 2010: Guerra ao Terror, o grande campeão do ano, vencedor de seis estatuetas, deu o Oscar de Melhor Direção à primeira mulher na história da sétima arte.
Foi um repleto de lançamentos, e para conferir a lista completa dos filmes que chegaram aos cinemas em 2010, é só clicar aqui.